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100 anos de Florestan Fernandes: a atualidade sociológica de um clássico

Este conturbado ano de 2020, afligido por uma das piores crises sanitárias da história e pelo arrefecimento de extremismos políticos, também marca o centenário de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX: o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995). É justamente nesse momento sombrio e de desalento com o futuro que o pensamento de Florestan Fernandes pode nos ajudar a pavimentar caminhos mais esperançosos para o Brasil e a América Latina. Pensador crítico, sociólogo rigoroso, militante socialista, parlamentar propositivo e engajado com as causas dos “de baixo”, a vida de Florestan Fernandes é sem dúvida uma fonte de inspiração e sua obra é um instrumento de combate às diversas formas de desigualdade.  

Florestan Fernandes: 100 anos de um grande cientista e pensador brasileiro

Autor de uma obra extensa e complexa, durante a infância Florestan Fernandes teve de passar por uma série de privações. Filho de uma empregada doméstica, aos seis anos ele já precisava trabalhar como se fosse um adulto. Morador de cortiço na cidade de São Paulo, desde muito cedo Florestan Fernandes conheceu a realidade difícil das classes e dos grupos subalternizados, a exemplo dos negros, dos pobres e das mulheres. A socialização como criança pobre, de origem humilde, foi despertando nele um compromisso com os excluídos. Em suas palavras: “eu nunca teria sido o sociólogo em que converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extra-escolar que recebi, através de duras lições de vida” (FERNANDES, 1976, p. 142). Nos anos 1940, Florestan Fernandes atuou por um tempo como militante trotskista e ingressou no curso de ciências sociais da Universidade de São Paulo (SOARES, 1997). Com o seu mestre, o sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), Florestan Fernandes participou nos anos 1950 das pesquisas da Unesco, realizando estudos na cidade de São Paulo sobre as relações raciais entre brancos e negros. Sua interpretação contrastava com a visão dominante da época, que concebia o Brasil como uma espécie de “paraíso racial”. A partir daí nasceriam os livros “Negros e Brancos em São Paulo”, “O negro no mundo dos brancos”, “A integração do negro na sociedade de classes”, este último publicado em 1964, e vários outros livros canônicos como “A revolução burguesa no Brasil”, de 1975, e “Significado do protesto negro”, publicado em 1989.

Ao longo de suas mais de 50 obras, Florestan Fernandes debruçou-se sobre diferentes temas. Afastado da docência durante a ditadura (1964-1985) através de uma aposentaria compulsória imposta pelo AI-5, Florestan Fernandes seguiu para o exílio no Canadá, onde lecionou na Universidade de Toronto. O seu retorno ao Brasil, e posteriormente a sua atuação como deputado federal dentro PT (Partido dos Trabalhadores), coincidiu com um interesse muito forte em participar da aprovação da nova Constituição. Sua atividade parlamentar foi importantíssima. Florestan Fernandes propôs inúmeros projetos de lei. Defendeu, por exemplo, a Escola Pública de qualidade, debateu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, elaborou o capítulo IX da Emenda Constitucional denominada “Dos Negros”, documento no qual levantou críticas e sugeriu soluções para a inclusão democrática do negro na sociedade.  

No Brasil atual, com a escalada cada vez mais explícita do autoritarismo e do negacionismo histórico, o pensamento de Florestan Fernandes se faz mais que necessário. Isso pode ser verificado na leitura de algumas de suas principais obras. No primeiro volume do livro “A integração do negro na sociedade de classes”, um dos grandes objetivos de Florestan Fernandes é saber como o Povo emerge na história, por intermédio do contingente negro e mulato, “porque foi esse contingente da população nacional que teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata e senhorial e do desenvolvimento posterior do capitalismo no Brasil” (FERNANDES, 2008a, p. 21). Ao fazer isso, o autor procurou evidenciar como a modernização ocorreu na esfera das relações raciais, como um fenômeno heterogêneo, descontínuo e unilateral. A forma com que tal modernização operou, acabou engendrando um dos problemas sociais mais graves do país, pois não foi dado aos antigos agentes do trabalho escravo assistência e garantias para protegê-los na transição para o sistema de trabalho livre, sob a égide da “ordem social competitiva” (FERNANDES, 2008a).

Num país que ainda se recusa assumir o preconceito e o racismo, Florestan Fernandes nos presenteia com um exame minucioso das condições nas quais a população negra, após uma Abolição incompleta, buscava (e ainda busca) novas condições de sobrevivência numa sociedade de classes em formação que bloqueava suas possiblidades de inserção e de disputa competitiva e igualitária com os brancos. Essa questão é desenvolvida com mais afinco no segundo volume do livro “A integração do negro na sociedade de classes”, cujo foco são os anseios, os processos, as promessas e os obstáculos para a integração da população negra, que estrutura o nosso permanente dilema racial (FERNANDES, 2008b). Daí a necessidade de uma Segunda Abolição e do protagonismo dos novos movimentos negros. Para Florestan Fernandes (2017), não haverá democracia no Brasil enquanto persistir a desigualdade racial e a discriminação dos negros. Em outras palavras: a questão racial, intrinsecamente ligada a de classe, é o grande teste da democracia entre nós. Sem este “experimento” a palavra da lei não passará de mera “literatura”.

A “reação sociopática à mudança social” da nossa burguesia, termo muito utilizado por Florestan Fernandes, atravanca a existência de uma verdadeira democracia, pensada de forma ampla e não meramente restritiva. Na acepção de Gabriel Cohn (2002), Florestan Fernandes percebeu que ao se abusar da referência à democracia na sua estreita qualificação “racial”, o que se faz é ocultar a questão de fundo, isto é, os obstáculos e resistências dinâmicas à emergência efetiva da democracia em todas as suas dimensões, a começar pela política, mesmo porque a chamada democracia racial é perfeitamente compatível com a autocracia política e com o autoritarismo social. Ao contrário de outros intérpretes, Florestan Fernandes (2006) acreditava que o burguês já surge, no Brasil, como uma “entidade especializada”, seja na figura do agente artesanal inserido na rede de mercantilização da produção interna, seja como negociante. De um lado porque desde os tempos coloniais a renda era canalizada de dentro para fora; de outro lado porque o sistema colonial forçava um tipo de acomodação que retirava da grande lavoura qualquer poder de dinamizar a economia interna.

Outra questão de extrema relevância para o entendimento do Brasil atual se encontra no livro “Poder e contrapoder na América Latina”, sobretudo na ideia de “fascistização”. Segundo o autor, “o fascismo não perdeu, como realidade histórica, nem seu significado político nem sua influência ativa” (FERNANDES, 2015, p. 33). A falta, portanto, de uma elaboração ideológica e de uma tecnologia organizada não indica ausência de fascismo. Mas constitui uma evidência histórico-cultural de uma forma particular de fascismo, pautada na existência de uma ordem constitucional que, apesar de menos simbólica, apresenta validade para a autodefesa e o fortalecimento dos privilegiados. O resultado deste dilema é o aparecimento do fascismo como realidade histórica; ou seja, o fascismo sancionado pelos “costumes” e pelas “leis”, operando como força social e política. Daí também a peculiaridade do presidencialismo em países da América Latina, que faz do “presidente” um ditador despótico, com traços mandonistas e autoritários próprios. Nesse caso, não seria exagero lembrar que as tendências direitistas e ultradireitistas latino-americanas estão vinculadas à irrupção e à evolução do fascismo na Europa, ainda que tenham se desenvolvido sob outras condições (FERNANDES, 2015). A atualidade dessas reflexões é realmente impressionante, pois provoca a imaginação e instiga a ação transformadora. Como disse Fernandes (1976, p. 195), numa sociedade capitalista como a brasileira, “os mecanismos de defesa da ordem não passam pelo planejamento democrático, mas pela omissão ou pela opressão e pela repressão”.

Referências

COHN, Gabriel. Florestan Fernandes: “A integração do negro na sociedade de classes”. In: MOTA, Lourenço Dantas (Org.). Introdução ao Brasil:Um banquete no trópico, Vol. 2.São Paulo: Editora SENAC, 2002. p. 385-402.

FERNANDES, Florestan. “Em busca de uma sociologia crítica e militante”. In: A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 140-212.

______. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006.

______. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”. 5. ed. São Paulo : Globo, 2008a. (Obras reunidas de Florestan Fernandes, vol 1).

______. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. São Paulo: Globo, 2008b. (Obras reunidas de Florestan Fernandes, vol 2).

______. “Notas sobre o fascismo na América Latina”. In: Poder e contrapoder na América Latina. 2ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

______. “Luta de raças e de classes”. In: Significado do protesto negro. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2017.

SOARES, Eliane Veras. Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo: Cortez, 1997.

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