Com o avanço do novo coronavírus, a falta de acesso à alimentação adequada e justa tem se agravado para uma parcela significativa da população brasileira. Embora necessárias, as medidas de isolamento faz com que diversas famílias necessitam recorrer cada vez mais aos alimentos industrializados por serem considerados mais baratos e por durarem mais tempo na despensa, além da facilidade de serem consumidos a qualquer momento¹.

O problema é que esses itens definidos como ultraprocessados – conforme demonstra o respeitável Guia Alimentar para a População Brasileira e diversos estudos ao redor do mundo sobre o assunto, tendem a ser excessivamente calóricos e menos nutritivos do que os alimentos in natura, além de causarem severos danos ambientais e sociais. Inclusive, essa “comida porcaria” produzida e comercializada pela indústria de alimentos pode contribuir a médio e longo prazo para o surgimento de graves problemas para a população, como as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).
O direito à alimentação adequada e justa da população não está assegurado, pelo contrário, está sendo ainda mais comprometido com o aprofundamento dos efeitos perversos da pandemia. A fome oculta e invisível (desnutrição), como denunciava Josué de Castro, e, posteriormente, Dom Helder Câmara, Betinho e Vandana Shiva, gera prejuízos incalculáveis para aqueles que não têm o minimo acesso a uma alimentação de qualidade. Essa situação de calamidade pública atinge tanto aqueles que vivem na cidade como no campo, principalmente pessoas sem renda mínima, uma parcela significativa da população negra, além das famílias rurais com acesso precário à terra, as comunidades quilombolas, ribeirinhas e as populações indígenas.
O agrônomo, escritor e ex-diretor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura(FAO), José Graciano da Silva, alertou que as doenças provocadas pela má alimentação, pode ser considerada um dos principais agravantes da Covid-19. Ele ainda afirma que a maior procura por alimentos ultraprocessados em supermercados tem prejudicado diversos agricultores familiares, pois muitos deles dependem de feiras livres, restaurantes e bares para ter um maior rendimento. Com o menor movimento nesses espaços, vários produtores familiares temem não manter as atividades e tiveram que descartar frutas, verduras, legumes e outros alimentos.
Como uma forma de garantir maior proteção social, a alimentação de qualidade deve ser pensada muito além de parâmetros nutricionais, mercadológicos ou por critérios reducionistas e/ou meramente técnicos. O combate a insegurança alimentar e nutricional, precisa ser articulado através de dimensões políticas, sociais, culturais, econômicas e ambientais. O bem viver e alimentar, para não se tornar apenas uma retórica vazia e desprovida de significado, precisa ser entendido de forma individual, coletiva e solidária, como um direito humano básico de forma a garantir o acesso permanente e regular aos alimentos, de maneira socialmente justa.
O sociólogo e combatente da fome Jean Ziegler afirma (p.31) que o Direito à Alimentação, artigo 25 reconhecido pela ONU, é violado de forma constante e brutal em diversas partes do mundo. Esse direito está relacionado a ter acesso, regular e permanente, a uma alimentação quantitativa e qualitativa de um povo, garantindo uma vida plena e satisfatória, livre de problemas causados pela falta de consumo adequado de calorias diárias.
Segundo os princípios e diretrizes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a alimentação adequada e justa perpassa diretamente a aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e as necessidades alimentares especiais, considerando e adequando, quando necessário, o referencial da tradição local. Além disso, precisa atender aos princípios como: variedade, qualidade, equilíbrio, moderação e prazer (sabor), às dimensões de classe, gênero, raça e etnia e às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livres de contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados.
Agora, nesse momento crítico, a curto prazo, torna-se ainda mais necessário a valorização dos circuitos locais de produção e consumo, sobretudo através das feiras orgânicas e agroecológicas dos produtores familiares. De maneira emergencial, se faz necessário criar mais iniciativas por meio de políticas públicas para dar maior apoio à agricultura familiar e paralelamente assegurar o acesso à população à “comida de verdade”, produzida sobretudo, de forma sustentável, que respeite a socio-biodiversidade. Junto a isso, esses alimentos de qualidade devem chegar de forma rápida e efetiva onde estão as pessoas, grupos e comunidades que estão mais vulneráveis, pois como dizia Betinho, “quem tem fome, tem pressa”.
Em tempos sombrios, torna-se ainda mais urgente que a sociedade civil se mobilize para barrar os retrocessos socioeconômicos do Governo federal e avançar no combate à fome e insegurança alimentar e nutricional, que assolam profundamente o país. Nesse sentido, a luta por justiça alimentar, na qual possibilite que um conjunto de propostas sejam implementadas em caráter emergencial nas esferas federal, estadual e municipal, é algo de suma importância para que a saúde e o direito à alimentação dos brasileiros sejam de fato garantido e respeitado.
¹Isso, claro, quando não sofrem de fome crônica e conseguem ter acesso a comida suficiente para atingir os níveis mínimos necessários para uma vida ativa.